Dados do Trabalho
Título
FASCEITE NECROTIZANTE POR CHOQUE TOXICO ESTREPTOCOCICO EM CRIANÇA DE UM ANO DE IDADE: UM RELATO DE CASO
Resumo
INTRODUÇÃO: A síndrome do choque tóxico estreptocócico pode se manifestar como fasceíte necrotizante, cujo principal sintoma será dor intensa na área afetada, desproporcional ao exame clínico. A maioria dos casos apresenta edema e eritema, sendo difícil discernir a fasceíte de uma celulite simples. Por sua alta mortalidade e curso clínico de rápida deterioração, a alta suspeição clínica é crucial para um tratamento rápido e adequado. OBJETIVO: Conscientizar a população médica sobre a importância do alto grau de suspeição direcionado à fasceíte necrotizante nos casos de lesões de pele. MÉTODO: Consulta de prontuário médico, entrevistas, fotografias, artigos científicos e revisão literária. RELATO DE CASO: Paciente do sexo masculino, com 1 ano de idade, apresentou lesão cutânea súbita em coxa esquerda, sem causa definida, com rápida progressão local e evolução para instabilidade hemodinâmica e choque séptico, com necessidade de internação em unidade de terapia intensiva do Hospital Mater Dei, em Belo Horizonte. Foram necessárias múltiplas abordagens em bloco cirúrgico para desbridamento da lesão do membro inferior esquerdo, que foi caracterizada como fasceíte necrotizante. Na cultura dos fragmentos de tecidos moles foi identificado o crescimento do germe Streptococcus pyogenes, o que juntamente com o quadro clínico do paciente levou ao diagnóstico de síndrome do choque tóxico estreptocócico. DISCUSSÃO: As infecções estreptocócicas, incluindo a síndrome do choque tóxico, são infecções graves, que, quando associadas à fasceíte necrotizante, tornam o quadro ainda mais dramático. CONCLUSÃO: O diagnóstico precoce, o pronto tratamento adequado dessas condições, a disponibilidade de materiais e serviços humanos em tempo integral e a assistência de equipe multidisciplinar fazem a diferença no prognóstico e qualidade de vida dos pacientes acometidos.
Introdução
A síndrome do choque tóxico estreptocócico (SCT) é causada por exotoxinas decorrentes de uma infecção por Streptococcus β hemolyticus do grupo A, também chamado de S. pyogenes. As toxinas ativam o sistema imune com liberação maciça de citocinas inflamatórias com consequente aumento da permeabilidade capilar, lesão tecidual sistêmica, choque e falência múltipla de órgãos. O S. pyogenes é naturalmente encontrado na pele e nas vias aéreas de indivíduos assintomáticos, contudo, é um agente frequente em muitas doenças pediátricas. (1)
O sintoma inicial mais comum da SCT é a dor abrupta e severa e que precede os sinais inflamatórios na porta de entrada. A dor geralmente envolve um membro, mas pode mimetizar um quadro de peritonite, doença inflamatória pélvica, pneumonia, infarto agudo do miocárdio, colecistite ou pericardite. Aproximadamente 20% dos doentes apresentam síndrome gripal-like caracterizada por febre, mialgia, náuseas, vômitos e diarreia. (1; 2)
A SCT, através da ação das exotoxinas bacterianas, ainda pode estar associada com a fasceíte necrotizante (FN) que, por sua vez, é uma infecção dos tecidos mais profundos, que resulta em destruição progressiva da fáscia muscular subjacente à gordura subcutânea. O próprio tecido muscular é frequentemente poupado por causa de seu grande suprimento sanguíneo. A infecção, entretanto, normalmente se espalha ao longo da fáscia do músculo e o tecido sobrejacente pode se mostrar inicialmente afetado. (1; 2)
O diagnóstico da SCT é definido a partir de uma infecção por Streptococcus β hemolyticus do grupo A associada à choque e falência de órgãos. Ela apresenta alto índice de mortalidade e menos de 50% dos casos exibem os sinais clínicos clássicos desta entidade, o que exige alto índice de suspeição por parte da equipe médica para que se realize um diagnóstico rápido e adequado. Nos casos em que a fasceíte está presente, a abordagem clínica e cirúrgica agressiva com antimicrobianos apropriados e desbridamento da lesão são cruciais para um desfecho resolutivo. (3)
Neste trabalho, será apresentado um caso de fasceíte necrotizante por choque tóxico estreptocócico em uma criança de 1 ano de idade, admitida no nosso serviço com relato de surgimento de lesão arroxeada em coxa esquerda associada à lesões bolhosas, febre e à prostração, seguidos de instabilidade hemodinâmica.
Objetivo
Conscientizar a população médica sobre a importância do alto grau de suspeição direcionado à fasceíte necrotizante nos casos de lesões de pele, cuja principal característica é a dor intensa, e que rapidamente evoluem para um mau estado geral do paciente, assim como abordar o tratamento relacionado à FN por choque tóxico estreptocócico.
Método
As informações sobre o presente estudo foram coletadas através de consulta de prontuário médico, entrevistas, fotografias, artigos científicos e revisão literária.
Resultado
Paciente do sexo masculino, proveniente de Itabira, 1 ano e 4 meses de idade, peso de 10 kg, sem comorbidades ou alergias e previamente hígido, foi trazido pelos pais ao pronto socorro do Hospital Mater Dei, em Belo Horizonte, na tarde do dia 12 de maio de 2024, com relato de surgimento de lesão arroxeada na coxa esquerda pela manhã, associada a edema local, febre e lesões bolhosas com conteúdo hemático.
Na admissão o paciente encontrava-se em regular estado geral, com febre de 38,2ºC, prostrado, desidratado, taquicárdico, hipotenso e com dessaturação, sendo necessária expansão volêmica em acesso venoso periférico e aporte de oxigênio em cateter nasal na sala vermelha. Foi aventada a hipótese de picada de aranha marrom e discutida a possibilidade com a equipe de toxicologia do Hospital João XXIII, que não identificou quadro típico e nem alterações laboratoriais compatíveis. Após a coleta dos exames foi iniciada antibioticoterapia com Ceftriaxona e o paciente foi encaminhado à Unidade de Terapia Intensiva Pediátrica (UTIP) devido à instabilidade hemodinâmica e gravidade do quadro.
Foi admitido na UTIP em choque séptico, com necessidade de acesso venoso central, intubação orotraqueal (IOT), sondagem vesical e gástrica e termômetro esofagiano. Foram iniciadas drogas vasoativas, hidrocortisona e ampliado espectro do antimicrobiano para Tazocin, Vancomicina e Clindamicina e realizado ecocardiograma à beira leito, que evidenciou disfunção do ventrículo esquerdo. Novos exames sanguíneos foram coletados para pesquisa de painel viral e estreptococos, com ambos os resultados negativos. A criança manteve instabilidade, evoluiu com lesão renal aguda e piora laboratorial, manteve febre contínua e após discussão com equipe de infectologia o esquema de antibiótico foi escalonado para Vancomicina, Meropenem e Clindamicina, além de ser necessária a realização de hemotransfusão e início de vitamina K.
O quadro clínico associado aos exames realizados levou à hipótese diagnóstica de síndrome do choque tóxico por picada de aranha ou por infecção secundária à ruptura da barreira cutânea, sendo indicada a infusão de imunoglobulinas para redução da resposta inflamatória exacerbada e tratamento adequado da patologia. Após dois dias de cuidados intensivos o paciente apresentou piora da lesão cutânea da coxa esquerda, que se encontrava com sufusões hemorrágicas, edema e hiperemia intensa que progrediram para a região inguinal bilateral, para a bolsa escrotal e para toda a face posterior da coxa esquerda (imagem 1). O paciente foi encaminhado ao bloco cirúrgico aos cuidados da cirurgia plástica e da cirurgia pediátrica para desbridamento da lesão.
No 3º dia de internação o paciente foi então submetido ao desbridamento das lesões da face anterior, medial e posterior da coxa esquerda, da região inguinal bilateral e de toda a bolsa escrotal, com retirada de necrose extensa de pele, tecido subcutâneo e fáscia muscular, caracterizando a lesão como uma fasceíte necrotizante (imagem 2). Foram coletadas amostras de todos os tecidos para cultura e o curativo foi realizado com Dermacerium e enfaixamento local.
Devido à grande extensão e profundidade da lesão foi solicitada a utilização de terapia com pressão negativa na ferida para estímulo de granulação e para acelerar o processo de melhora. Após 48 horas da primeira abordagem, no 5º dia de internação, foi realizada nova avaliação da ferida com desbridamento de áreas desvitalizadas remanescentes e durante o ato cirúrgico a equipe de cirurgia pediátrica optou pela implantação dos testículos na região inguinal devido à ausência de cobertura de pele no local e para proteção do órgão. O curativo à vácuo foi realizado na mesma abordagem.
O paciente manteve quadro clínico grave, mas com melhora laboratorial gradativa, e no dia seguinte foi submetido a nova abordagem cirúrgica devido a saturação da esponja do curativo à vácuo e contaminação do mesmo após evacuação da criança. Durante o ato cirúrgico foi realizada limpeza da ferida e identificado comprometimento vascular da musculatura distal da coxa esquerda com necessidade de fasciotomia. Um novo curativo à vácuo foi confeccionado.
No 7º dia de internação o curativo apresentou nova saturação da esponja e após o ocorrido a equipe de cirurgia pediátrica sugeriu a confecção de colostomia para desvio do trânsito intestinal e prevenção de uma infecção da ferida por contaminação local. Após autorização dos pais a colostomia e a troca do curativo foram realizados (imagem 3).
Com a boa resposta do paciente ao tratamento, o suporte ventilatório invasivo foi retirado no 8º dia de internação com ótima adaptação do paciente e foi programada alta para a enfermaria nos próximos dias. O curativo apresentou drenagem de pequena quantidade de secreção para o reservatório à vácuo e foram necessárias apenas duas trocas de curativo ao longo de oito dias, com melhora importante do leito da ferida, tecido de granulação abundante e ausência de novas áreas de necrose. Entretanto, devido à internação prolongada, o paciente apresentou ferida de decúbito em região occipital, sendo necessária abordagem com desbridamento da mesma.
No dia 23 de maio, 11º dia de internação, o paciente recebeu alta da UTIP e no dia 25 de maio foi identificado o crescimento do germe Streptococcus pyogenes sensível a Ertapenem na cultura do fragmento de pele retirado na primeira abordagem cirúrgica. Dessa forma a antibioticoterapia foi modificada e o diagnóstico do paciente foi concluído como a síndrome do choque tóxico estreptocócico (SCT).
Com a boa evolução do quadro e resposta adequada às medicações, no dia 03 de junho, foi realizada pelas equipes de cirurgia pediátrica e cirurgia plástica, orquidopexia e retalho fasciocutâneo axial da região medial da coxa direita para cobertura dos testículos. (imagem 4).
No dia 5 de junho o paciente retornou ao bloco cirúrgico e foram coletados enxertos de pele parcial finos do couro cabeludo, em região parietal direita, após tricotomia e preparo adequado da região. No leito receptor foram depositados folhetos de matriz dérmica para melhora da regularidade da lesão e preparação da região para receber os fragmentos de enxerto de pele. Logo em seguida foi realizada a enxertia de pele sobre a matriz dérmica e fixados os enxertos com fios de nylon (imagem 5).
O paciente apresentou excelente adaptação aos enxertos de pele, com pega adequada de 90% dos enxertos e está com a ferida completamente tratada e curada, sem nenhuma sequela em relação à mobilidade do membro inferior esquerdo.
Discussão
A suspeita clínica precoce nos casos de infecções estreptocócicas, incluindo a síndrome do choque tóxico, é fundamental para o adequado tratamento do paciente. Uma vez estabelecido o diagnóstico, o tratamento antibiótico adequado e o tratamento multimodal com equipe multidisciplinar permitem uma maior chance de recuperação do doente. (3; 4)
A fasceíte necrotizante envolvendo a região inguinal de infantes é uma condição rara, que acomete todo o plano subcutâneo e se espalha com rapidez. Uma vez diagnosticada, deve ser tratada com urgência e o desbridamento extenso realizado assim que possível, tendo em vista que, o tecido acometido é a fonte de citocinas e mediadores inflamatórios responsáveis pelo quadro de choque séptico. Após o desbridamento inicial, a ferida deve ser observada diariamente para avaliar a necessidade de tratamentos complementares. Estando tratada a infecção, os esforços devem ser voltados para reconstrução da área lesada, podendo a equipe abrir mão de diversas técnicas como enxertos, retalhos ou suturas para minimizar o defeito e reduzir sequelas motoras. (4)
Outro fator de importância relevante para o sucesso do tratamento é a disponibilidade de materiais especiais como curativos a vácuo, que aceleram o tempo de recuperação da ferida operatória infectada, reduzindo tempo de internação hospitalar, e da matriz dérmica, que permite maior fixação do enxerto de pele ao local da ferida, atribuindo maior mobilidade ao enxerto, melhores condições de pega e chances reduzidas de sequelas motoras para o paciente. (4)
Conclusão
A síndrome do choque tóxico estreptocócico é uma doença grave, que pode ter seu prognóstico agravado pela fasceíte necrotizante, levando a altas taxas de morbimortalidade. Entretanto, alguns fatores podem contribuir para a melhor evolução destes casos, sendo eles o diagnóstico precoce, o pronto tratamento adequado dessas condições, a disponibilidade de materiais e serviços humanos em tempo integral e a assistência de equipe multidisciplinar. Desta forma, um caso difícil, com possível desfecho trágico, pode ser conduzido com sucesso, devolvendo o paciente para seu convívio diário de forma digna, sem sequelas graves.
Referências
1. CARVALHO, Haroldo Teófilo de et al. Diagnóstico e tratamento da síndrome do choque tóxico estreptocócico em unidade de terapia intensiva pediátrica: relato de caso. Revista Brasileira de Terapia Intensiva, v. 31, p. 586-591, 2020.
2. ANTUNES, Rui et al. Streptococcus pyogenes toxic-shock syndrome. Acta Medica Portuguesa, v. 24, p. 617-620, 2011.
3. SINGH, Dilip Kumar et al. Morbidity and mortality of necrotizing fasciitis and their prognostic factors in children. Journal of Indian Association of Pediatric Surgeons, v. 27, n. 5, p. 577-584, 2022.
4. BONNE, Stephanie L.; KADRI, Sameer S. Evaluation and management of necrotizing soft tissue infections. Infectious Disease Clinics, v. 31, n. 3, p. 497-511, 2017.
Palavras Chave
Choque tóxico; fasceíte necrotizante; S. pyogenes .
Arquivos
Área
Cirurgia Plástica
Categoria
Cirurgia Plástica
Instituições
Hospital Mater Dei Contorno - Minas Gerais - Brasil
Autores
HELENA BERTOLIN SAD, ANDRÉ VILLANI CORREA MAFRA, IZABELLA MOURA DE GUERRA KALIL, PÂMELLA CHRISTINA FONSECA FERNANDES, VICTOR ANTUNES GUIMARÃES