Dados do Trabalho
Título
RECONSTRUÇAO DE COURO CABELUDO APOS ESCALPELAMENTO POR MORDEDURA DE CAO - RELATO DE CASO
Resumo
Introdução: A avulsão de couro cabeludo é uma lesão traumática de difícil reconstrução. As lesões por mordidas de cães são comuns, sendo a cabeça e o pescoço mais frequentemente envolvidos em pacientes pediátricos. O reimplante de couro cabeludo continua sendo a modalidade cirúrgica ideal, contudo, muitas vezes se mostra inviável, fazendo-se necessário outras técnicas reparadoras.
Método: Criança do sexo masculino de 1 ano e 6 meses sofreu escalpelamento por mordedura de cão da raça Pit Bull, apresentando ferida complexa de couro cabeludo com exposição de calota craniana. Realizado tentativa de reimplante microcirúrgico, porém sem sucesso devido a não identificação de vasos viáveis para anastomose. Optou-se por reconstrução com perfurações de calota craniana, aposição de matriz dérmica acelular e terapia por pressão negativa-TPN, seguida por enxertia de pele parcial com boa integração dos enxertos e cobertura das áreas ósseas expostas.
Discussão: Lesões de couro cabeludo podem ser bastante complexas, como, por exemplo,
sua avulsão parcial ou completa. O reimplante do tecido avulsionado é a primeira opção de reconstrução, mas é efetivo em poucos casos. Tratamentos alternativos incluem retalhos locais ou regionais, enxertos de pele e expansões teciduais. Alguns fatores devem ser levados em conta na escolha da terapia, como o tempo de isquemia do tecido, o grau de perda de vasos no retalho, as lacerações ou esmagamentos excessivos do tecido avulsionado, a preservação inadequada do retalho e as condições clínicas do paciente para suportar uma cirurgia de grande porte. Perfurações ósseas, matriz dérmica acelular, terapia por pressão negativa seguida de enxertia de pele é uma alternativa de reconstrução.
Conclusão: Observa-se que existem diversas técnicas para cobertura de calota craniana. Cabe ao cirurgião avaliar cada caso individualmente e chegar à melhor proposta para a reconstrução levando-se em conta a morbidade, os recursos disponíveis e os resultados estéticos e funcionais. A estratégia de reconstrução após avulsões de couro cabeludo com perfurações ósseas, matriz dérmica acelular, terapia por pressão negativa e enxertia de pele é uma alternativa aceitável quando não é possível o reimplante do couro cabeludo avulsionado.
Introdução
Lesões por avulsão de couro cabeludo são lesões traumáticas de difícil reconstrução e um desafio para os cirurgiões plásticos. Muitas técnicas devem ser levadas em consideração e a escolha deve ser feita avaliando o tamanho do defeito, localização, preservação de periósteo, integridade do couro cabeludo remanescente e comorbidades do paciente ¹.
Estima-se que 1% dos atendimentos em pronto-socorro nos Estados Unidos seja decorrente de mordeduras por animais e cerca de 80% das lesões envolvem a cabeça e o pescoço ² . Estudos publicados de 2011 a 2016 apontaram os Pit Bulls como a raça mais comum por infligir mordidas de cães na população pediátrica nos Estados Unidos. Mais importante ainda, os Pit Bulls têm maior probabilidade de causar ferimentos graves que requerem reparos cirúrgicos. As lesões causadas por mordedura são, na maioria das vezes, múltiplas e de gravidade variável, podendo se apresentar desde pequenas lacerações a avulsões completas ³ .
O reimplante de couro cabeludo continua sendo a modalidade cirúrgica ideal. O tempo limite de isquemia quente de 17 horas e o tempo limite de isquemia fria de 24 horas é o considerado padrão ⁴ . Contudo, o reimplante, muitas vezes, não é possível por inviabilidade do retalho do couro cabeludo e de seus vasos, por inexistência de equipe qualificada na grande maioria dos centros médicos e pela condição clínica do paciente. Por esse motivo, os cirurgiões devem ter uma gama de outras possibilidades reparadoras ao se depararem com esta situação ⁵ .
Objetivo
Neste trabalho é apresentado o caso de uma criança com trauma por mordedura de cão resultando em avulsão extensa do couro cabeludo com exposição óssea sem pericrânio, e reconstrução com perfurações ósseas, matriz dérmica acelular, TPN e enxertia de pele.
Método
Criança do sexo masculino, 1 ano e 6 meses de idade, encaminhada ao nosso serviço de emergência 6 horas após trauma em face e escalpelamento por mordedura de cão da raça Pit Bull. O paciente passou anteriormente por atendimento em UPA onde foi realizada sutura de ferimento corto-contuso em fronte e enfaixamento cefálico. Admitido em nosso serviço apresentando exposição de calota craniana em região parieto-occipital medindo 12x10 cm, com avulsão de pericrânio, sem sangramento ativo (Figura 1). A criança veio acompanhado da mãe, que estava em posse da porção de couro cabeludo avulsionado. Procedido com lavagem exaustiva da peça e tentativa de reimplante imediato de couro cabeludo com técnica microcirúrgica, porém sem sucesso devido a inexistência de vasos sanguíneos viáveis que possibilitassem as anastomoses. Optou-se então pela realização de curativos diários com sulfadiazina de prata 1% creme. Após 7 dias do trauma, o paciente foi submetido a confecção de trepanações em tábua externa associado a aposição de matriz dérmica acelular de dois tempos (Nevelia®) com instalação de terapia por pressão negativa a 75 mmHg sobre a matriz que foi perfurada com lâmina de bisturi nº 11 (Figura 2). Foi realizada troca de TPN sobre a matriz dérmica após uma semana da primeira instalação e, ao final de duas semanas, foi observado a integração da matriz dérmica em sua totalidade, sem regiões de perda (Figura 3). Realizou-se então a enxertia de pele parcial em malha expandida 2:1 sobre a matriz dérmica, utilizando-se como área doadora do enxerto a região íntegra do couro cabeludo remanescente (Figura 4). Confeccionou-se curativo de Brown sobre o enxerto e curativo com rayon salinizado com soro fisiológico em área doadora, finalizando com enfaixamento cefálico.
Resultado
Retirado curativo de Brown após 5 dias da enxertia e observado enxerto bem fixado, sem áreas de perdas. Durante a evolução, o paciente apresentou integração satisfatória do enxerto e boa cicatrização, resultando em cobertura completa da calota craniana previamente exposta (Figura 5).
Discussão
Avulsões de couro cabeludo constituem um desafio à cirurgia reconstrutora, tendo em vista a gama de possibilidades de lesões – parciais, totais, com ou sem exposição de calota craniana –, bem como o impacto devastador aos pacientes acometidos, tanto na esfera funcional quanto na psicológica.
A reconstrução microcirúrgica revolucionou o manejo da avulsão de couro cabeludo, tendo sido o primeiro reimplante realizado por Miller em 1974. Contudo, o sucesso cirúrgico depende de muitos aspectos, dentre os quais se encontram: o tempo de isquemia do tecido, o grau de perda de vasos no retalho, as lacerações ou esmagamentos excessivos do tecido avulsionado, a preservação inadequada do retalho e as condições clínicas do paciente para suportar uma cirurgia de grande porte ⁶ .
Tendo em vista esses aspectos, cabe ao cirurgião reconhecer até que ponto a microcirurgia é válida e benéfica ao paciente e, em alguns casos, reconhecer outras formas terapêuticas como possibilidades para fechar esses defeitos, entre as quais se incluem ⁷:
● Fechamento primário: utilizada se defeitos pequenos, preferencialmente inferiores a 3 cm de diâmetro, com resultados esteticamente satisfatórios. Se áreas mais extensas, há a possibilidade de incisão na gálea subjacente para diminuir a tensão nas margens da ferida.
● Fechamento por segunda intenção: permitido se ferimentos pequenos, inferiores a 1 cm, sem exposição de tecidos nobres. Como desvantagens, há a alopecia, o risco de infecção e cicatrização patológica.
● Enxertos de pele: apesar de fornecerem um meio mais rápido e bastante eficaz para fechamento do defeito, a enxertia de pele exige um leito adequadamente vascularizado e não é bem sucedida se aplicada diretamente ao osso exposto. Deste modo, em casos de exposição óssea, que se mostram a maioria dos casos, há a possibilidade de drilagem ou trepanação da calota craniana para melhor vascularização do leito da ferida e, assim, possibilitar crescimento de tecido de granulação ⁸ . Se o pericrânio estiver intacto, geralmente, é suficiente para suportar um enxerto de pele. Quando o pericrânio está ausente, a utilização de matriz dérmica acelular associada a TPN é uma opção interessante e com baixa morbidade para poder receber a enxertia de pele ⁹.
● Expansão de tecidos: apesar de fornecerem um tecido amplo, com preservação de sensibilidade no couro cabeludo, cor, espessura e cabelo; requer um mínimo de dois procedimentos operatórios, além do período prolongado de terapêutica até se obter um resultado satisfatório.
● Retalhos locais: compostos por pele, tecido subcutâneo e gálea aponeurótica, são uma boa opção para reconstrução de ferimentos de couro cabeludo de pequeno e médio portes quando não é possível realizar o fechamento primário. As opções reconstrutivas são diversas, incluindo retalho por rotação, retalho em cata-vento, retalho em avanço bipediculados, retalhos duplos opostos em rotação, retalho Y a T, retalho fronto-occipital pediculado e retalho de Orticochea.
● Retalhos livres microcirúrgicos: o fechamento de defeitos do couro cabeludo cobrindo áreas de 15% a 20% em um único procedimento se tornou possível a partir do desenvolvimento da técnica de microcirurgia. Contudo, devem ser reservados para situações apropriadas, quando pele, retalhos locais, enxertia ou cicatrização por segunda intenção não forem opções, devido a envolver morbidades no sítio doador.
Algumas tecnologias, a depender da extensão da lesão, podem ser aliadas a terapias já consagradas, como o uso de matriz dérmica acelular associada ao enxerto de pele total ou parcial. Como terapia adicional nesses casos, mostra-se útil a associação de TPN, que auxilia na formação do tecido de granulação e integração da matriz, além de melhorar a drenagem e o clearance bacteriano local.
Conclusão
Avulsões de couro cabeludo continuam sendo um grande desafio reconstrutivo. Observa-se que existem diversas técnicas para cobertura de calota craniana. Cabe ao cirurgião avaliar cada caso individualmente e chegar à melhor proposta para a reconstrução levando-se em conta a morbidade, os recursos disponíveis e os resultados estéticos e funcionais. A melhor forma de reconstrução permanece sendo o retalho microcirúrgico, contudo isso só é possível na minoria dos casos, sendo necessário recorrer a terapias alternativas quando o mesmo não é uma opção viável. Nestes casos, a drilagem da calota craniana com aposição de matriz dérmica acelular associada a TPN e posterior enxertia de pele representa uma alternativa viável de reparo dessas lesões.
Referências
1. Cen H, Jin R, Yu M, Weng T. Clinical decision model for the reconstruction of 175 cases of scalp avulsion/defect. Am J Otolaryngol. 2021 Jan-Feb;42(1):102752. doi: 10.1016/j.amjoto.2020.102752. Epub 2020 Oct 18. PMID: 33125900.
2. Ng ZY, Eberlin KR, Lin T, Masiakos PT, Cetrulo CL Jr. Reconstruction of Pediatric Scalp Avulsion Injuries After Dog Bites. J Craniofac Surg. 2017 Jul;28(5):1282-1285. doi: 10.1097/SCS.0000000000003607. PMID: 28437267.
3. Alizadeh K, Shayesteh A, Xu ML. An Algorithmic Approach to Operative Management of Complex Pediatric Dog Bites: 3-Year Review of a Level I Regional Referral Pediatric Trauma Hospital. Plast Reconstr Surg Glob Open. 2017 Oct 20;5(10):e1431. doi: 10.1097/GOX.0000000000001431. PMID: 29184724; PMCID: PMC5682160.
4. Singh K, Aggarwal K. Total Scalp Replantation after Traumatic Avulsion. Indian J Plast Surg. 2020 Aug;53(2):311-312. doi: 10.1055/s-0040-1716309. Epub 2020 Aug 30. PMID: 32884203; PMCID: PMC7458840.
5. Richardson MA, Lange JP, Jordan JR. Reconstruction of Full-Thickness Scalp Defects Using a Dermal Regeneration Template. JAMA Facial Plast Surg. 2016 Jan-Feb;18(1):62-7. doi: 10.1001/jamafacial.2015.1731. PMID: 26606002.
6. Milcheski DA, Cheroto-Filho A, Goldenberg D, Farias JC, Ferreira MC. Reimplante Microcirúrgico das Avulsões de Couro Cabeludo- Experiência de 7 anos . Rev. Bras. Cir. Plást.2003;18(3):51-54
7. Anbar RA, Almeida KG de, Nukariya PY, Anbar RA, Coutinho BB de A.Métodos de reconstrução do couro cabeludo. Rev Bras Cir Plást [Internet]. 2012Jan;27(1):156–9. Available from: https://doi.org/10.1590/S1983-51752012000100026
8. Furlanetti LL, de Oliveira RS, Santos MV, Farina JA Jr, Machado HR. Multiple cranial burr holes as an alternative treatment for total scalp avulsion. Childs Nerv Syst. 2010 Jun;26(6):745-9. doi: 10.1007/s00381-010-1145-7. PMID: 20390420.
9. Castro JCD, Coltro PS, Jorge JLG, Farina Junior JA. Acute otitis externa because of negative pressure wound therapy applied over the head and ear canal for scalping treatment. Int Wound J. 2019 Apr;16(2):559-563. doi: 10.1111/iwj.13012. Epub 2018 Oct 31. PMID: 30379394; PMCID: PMC7948717.
Palavras Chave
couro cabeludo; Ferimentos e Lesões; Mordeduras e Picadas
Arquivos
Área
Cirurgia Plástica
Categoria
Cirurgia Plástica
Instituições
HOSPITAL DAS CLINICAS DE RIBEIRÃO PRETO - USP - São Paulo - Brasil
Autores
ANA CAROLINA DOS REIS, VICTOR AFONSO BECHER BRAGA, MARIAH MENOCI MORTEAN, JAYME ADRIANO FARINA JUNIOR