Dados do Trabalho
Título
RECONSTRUÇAO DE LABIO INFERIOR UTILIZANDO RETALHO VENTRAL PEDICULADO DE LINGUA ASSOCIADO A RETALHO CUTANEO INFRALABIAL DE ROTAÇAO APOS RESSECÇAO DE CARCINOMA ESPINOCELULAR - UM RELATO DE CASO
Resumo
O câncer de boca é o mais frequente câncer não melanoma de cabeça e pescoço, compreendendo um conjunto de neoplasias malignas que afetam o lábio e a cavidade oral e que compartilham fatores de risco, apresentação clínica e recomendações de tratamento. O carcinoma espinocelular (CEC) é o principal subtipo histológico encontrado no câncer de lábio, apresentando como principais fatores de risco o tabagismo, etilismo e exposição à radiação UV. A ressecção cirúrgica é sua principal forma de tratamento, podendo ou não ser associada à radioterapia, nos estágios mais avançados. A reconstrução após a ressecção oncológica é especialmente desafiadora no lábio, visto o comprometimento localmente invasivo e destrutivo do CEC, com necessidade de reconstrução preservando a função e estética local. No presente estudo, relatamos um caso de reconstrução de lábio inferior conduzido em nosso serviço.
Introdução
O câncer de boca é o mais frequente câncer não melanoma de cabeça e pescoço, com aproximadamente 375 mil novos casos/ano no mundo. 1,2,3 Compreende um conjunto de neoplasias malignas que afetam o lábio e a cavidade oral e que compartilham fatores de risco, apresentação clínica e recomendações de tratamento. 1,2
O carcinoma espinocelular (CEC) é o principal subtipo histológico, correspondendo a 90% dos casos. 1,3 No caso do CEC de lábio, a evolução frequentemente ocorre a partir de uma lesão ulcerada conhecida como queilite actínica, com displasia progressiva, sendo o CEC suspeitado frente a uma lesão ulcerada que não cicatriza. 1 O diagnóstico deve ser confirmado por biópsia, e o tratamento é instituído a depender do tamanho e profundidade do tumor, e a presença de metástases regionais ou à distância. 1,4
A ressecção cirúrgica é a principal forma de tratamento do CEC no lábio, podendo ou não ser associada à radioterapia (RT) adjuvante, nos estádios mais avançados. 1,4 O objetivo do tratamento deve visar erradicar o tumor de modo a preservar ao máximo a função e estética local. 1,4 No entanto, visto o comprometimento localmente invasivo e destrutivo do CEC, em uma região nobre da face, a reconstrução após a ressecção oncológica pode ser especialmente desafiadora.
Conhecendo as dificuldades da abordagem do câncer de lábio, no presente estudo relatamos um caso de reconstrução de lábio inferior após ressecção de CEC atendido em nosso serviço.
Objetivo
No presente estudo, relatamos um caso de reconstrução de lábio inferior utilizando retalho ventral pediculado de língua associado a retalho cutâneo infralabial de rotação após ressecção de CEC, atendido pela equipe de Cirurgia Plástica do Hospital do Servidor Público Estadual de São Paulo (HSPE-SP).
Método
O relato de caso foi realizado através de consulta de prontuário, documentação de prontuário médico institucional, arquivo fotográfico pessoal e revisão bibliográfica. Para a revisão, foram pesquisados artigos publicados na base de dados Pubmed entre 2010 e 2024, utilizando os descritores “reconstrução de lábio inferior” e “retalho de língua”.
Resultado
Paciente do sexo masculino, 63 anos, portador de hipertensão arterial, sem outras comorbidades conhecidas, etilista social, sem histórico de tabagismo; apresenta fototipo 2 de Fitzpatrick, com histórico de câncer de pele prévio em tronco. Encaminhado ao ambulatório de Cirurgia Plástica do Hospital do Servidor Público Estadual (HSPE) pela equipe da Dermatologia para avaliação de lesão suspeita em lábio inferior, sem biopsia prévia, de aparecimento há aproximadamente 2 anos, com crescimento progressivo, sangramento intermitente, sem dor local. Ao exame, apresentava lesão ulcerada de 8 mm em vermelhão do lábio inferior à esquerda, coberta por crosta amarelada (Figura 1); não haviam linfonodos palpáveis ou indícios clínicos ou tomográficos de lesão à distância. Devido ao aspecto clínico sugestivo de carcinoma, optado por ressecção da lesão com margens amplas e reconstrução em dois tempos cirúrgicos.
O primeiro tempo cirúrgico foi dividido em dois momentos: a ressecção da lesão e a reconstrução. A ressecção da lesão foi realizada com margens de 1 cm, e foram encaminhadas amostras adicionais das margens medial, lateral e profunda para avaliação por congelação intraoperatória, que não demonstraram comprometimento por malignidade, possibilitando uma reconstrução mais segura. O defeito resultante foi de aproximadamente 25 mm de diâmetro, compreendendo o lábio inferior em sua espessura total e se estendendo além do vermelhão até o nível do sulco mentolabial, sem comprometimento da comissura labial (Figura 2). Visando preservar as características do vermelhão, utilizamos o retalho ventral pediculado miomucoso de língua: foi realizada uma incisão longitudinal na borda livre da língua, em sua porção mucosa não queratinizada, capaz de cobrir o defeito correspondente ao vermelhão, preservando um pedículo ventral contendo ramos terminais da artéria lingual (Figura 3). A área doadora foi fechada primariamente. Para reconstrução do defeito infralabial remanescente, foi confeccionado um retalho cutâneo local de rotação, respeitando medialmente os limites do sulco mentolabial e preservando os músculos mentual e depressor do ângulo da boca (Figuras 3 e 4). O segundo tempo cirúrgico, reservado para liberação do pedículo do retalho de língua, ocorreu após 4 semanas, tempo suficiente para autonomização do retalho.
A peça ressecada foi encaminhada para avaliação anatomopatológica, resultando em CEC moderadamente diferenciado e invasivo em camada muscular, com margens livres de neoplasia.
Em seguimento ambulatorial três meses após o procedimento, paciente vem mantendo sem indícios de recidiva clínica e com boa funcionalidade do esfíncter oral e motricidade da língua, com adequada abertura oral, fala e sem comprometimento na alimentação e ingestão de líquidos, além de resultado estético satisfatório (Figura 5).
Discussão
O câncer de boca compreende um conjunto de neoplasias malignas que afetam o lábio e a cavidade oral e que compartilham fatores de risco, apresentação clínica e recomendações de tratamento. É o mais frequente câncer não melanoma de cabeça e pescoço, com aproximadamente 375 mil novos casos/ano no mundo. 1,2 Na América do Sul, o Brasil é o país que apresenta maior incidência, com 3,6 casos/100 mil habitantes, e a segunda maior taxa de mortalidade, com 1,5 morte/100 mil habitantes. 2 Acomete principalmente homens (proporção 2-2,8:1), com mais de 40 anos e com baixa escolaridade e renda. 1,2,3 A maioria dos pacientes reportam histórico prévio de tabagismo ou consumo de álcool, que são fatores de risco bastante reconhecidos; a exposição à radiação ultravioleta também é descrita nos casos de câncer de lábio. 1,2,3,5
É importante distinguir o câncer de lábio que ocorre na porção mucosa e na porção cutânea, porque estas duas entidades apresentam diferentes fisiopatologias e implicações prognósticas. O câncer de lábio cutâneo se origina na porção externa do vermelhão e demonstra epiderme queratinizada espessa, similar as demais áreas de pele da cabeça e pescoço; apresenta índices metastáticos entre 2-5%, com sobrevida em 5 anos de 95%. Em contraste, o câncer de lábio mucoso se origina na porção interna do vermelhão, que apresenta um epitélio mucoso fino, rico em capilares e pequenas glândulas salivares; apresenta índices metastáticos regionais entre 10-20%, com sobrevida em 5 anos de 85-95% nos estágios iniciais e 40-70% nos estágios avançados. 1 Felizmente, devido sua localização de destaque na face, o câncer de lábio costuma ser diagnosticado em estágios iniciais. 1,3 A presença de uma ou mais metástase cervical é o fator isolado mais importante no prognóstico no câncer de lábio. 1
O carcinoma espinocelular (CEC) é o principal subtipo histológico, correspondendo a 90% dos casos. Destes, 90% acometem o lábio inferior, 8-9% o lábio superior e 1-2% em comissura. 1,3 No caso do CEC de lábio, a evolução frequentemente ocorre com displasia progressiva, a partir de uma lesão ulcerada conhecida como queilite actínica, sendo o CEC suspeitado frente a uma lesão ulcerada que não cicatriza. 1 Durante sua evolução, o CEC pode produzir destruição local substancial, causando deformidades e podendo envolver áreas extensas de tecido mole, cartilagem e osso, sendo o diagnóstico precoce fundamental. 2,4
O diagnóstico é realizado a partir da avaliação histopatológica por biopsia, e o tratamento é instituído a depender do tamanho e profundidade do tumor, e a presença de metástases regionais ou à distância. 1,4
A ressecção cirúrgica, com margem de segurança de 1 cm, é a principal forma de tratamento do CEC no lábio, podendo ser associada à radioterapia (RT) adjuvante nos estádios mais avançados. 1,4 A avaliação intraoperatória completa de margens (ex.: Mohs ou congelação) é recomendada; caso não seja possível, a reconstrução deve ser adiada até que seja comprovada margem de ressecção livre, e maiores taxas de recorrência devem ser esperadas. 4 O objetivo do tratamento deve visar erradicar o tumor de modo a preservar ao máximo a função e estética local, mantendo a capacidade de articulação, fala, mastigação, deglutição e expressão facial. 1,4,6,7 No entanto, visto o comprometimento localmente invasivo e destrutivo do CEC, em uma região nobre da face, a reconstrução após a ressecção oncológica pode ser especialmente desafiadora, principalmente na presença de defeitos de espessura total e/ou que comprometam mais de uma unidade estética ou mais que 1/3 do lábio. 5,6,7 Uma reconstrução inadequada no lábio pode resultar em danos funcionais e estéticos de difícil manejo, como microstomia, incompetência oral, assimetria, alteração da fala, entre outras complicações. 1,5,6
Visando reduzir o risco de complicações, diversas técnicas foram desenvolvidas para a reconstrução do lábio inferior. Anatomicamente, os lábios compreendem 3 camadas: pele, músculo e mucosa; todas estas camadas devem ser reposicionadas e consideradas em uma reconstrução ideal. 6 É classicamente aceito que perdas de substância de até 1/3 do lábio podem ser manejadas com fechamento primário, sem causar significante microstomia; por outro lado, defeitos que comprometam mais que 1/3 do lábio necessitarão de reconstruções mais complexas para que a função e a estética sejam preservadas ao máximo. 5,6 Na literatura, diversas técnicas podem ser encontradas: retalhos de Karapandzic, Eastlander, Webster, Abbé, Camille Bernard, Fujimori, Bengt-Johanson, retalhos livres (ex.: retalho anterolateral da coxa, radial composto, palmar longo, ulnar), entre outros. 5,6,7 A escolha para a melhor técnica deve considerar a localização do defeito em relação ao vermelhão, profundidade e acometimento do músculo orbicular da boca, proporção em relação ao diâmetro total do lábio (maior ou menor que 1/3), envolvimento das comissuras labiais ou modíolo, condições clínicas e dos tecidos locorregionais e presença de procedimentos prévios.
No caso conduzido em nosso serviço, optamos por reconstruir o vermelhão com um retalho ventral pediculado de língua. Este é um retalho versátil, que também é descrito na reconstrução do assoalho da cavidade oral, mucosa oral e outros defeitos periorais. 8,9 Pode ser pediculado unilateral ou em linha média, incluindo tecido bilateralmente na superfície ventral. Quando pediculado lateralmente, pode se estender posteriormente até as pápulas circunvaladas, sem incluir mucosa queratinizada dorsal, onde se encontram as papilas filiformes e fungiformes. Nenhuma mucosa do assoalho da boca deve ser incluída no retalho para que não haja restrição na mobilidade da língua no pós-operatório, nem se estender posteriormente em menos de 3 mm anterior às carúnculas mandibulares para prevenir leão dos ductos submandibulares. 8 A vantagem no uso do retalho de língua se deve à proximidade da área doadora ao defeito, facilidade e rapidez em sua confecção, compatibilidade de cor e textura ao lábio, vascularização ampla e confiável (derivada da artéria lingual), elasticidade do retalho, ausência de dano funcional à área doadora, e consequente resultado funcional e estético satisfatórios. A principal desvantagem seria a necessidade de autonomização do retalho, limitando temporariamente a qualidade de vida do paciente. 8,9,10 A inervação sensitiva do vermelhão reconstruído é esperada em certo grau, apesar de não ser imediata. 10
Para fechamento do defeito infralabial remanescente, utilizamos um retalho cutâneo local de rotação, baseado na artéria labial inferior. Este tipo de retalho também é vantajoso devido à proximidade da área doadora ao defeito, permitindo compatibilidade de cor e textura de pele, preservação da vascularização e inervação local, também possibilitando resultados estéticos e funcionais adequados.
Conclusão
A reconstrução de defeitos na face após ressecções oncológicas impõe um grande desafio na vida do cirurgião. A escolha da técnica depende do tamanho, profundidade e localização do defeito, devendo sempre visar a manutenção da funcionalidade e estética local. 4,5,6
O caso conduzido em nosso serviço demonstra uma associação de técnicas para reconstrução de lábio após ressecção de CEC, de modo que foi possível alcançar com sucesso um resultado funcional e estético.
Referências
1. HOWARD, Adam; AGRAWAL, Nishant; GOOI, Zhen. Lip and Oral Cavity Squamous Cell Carcinoma. Hematology/Oncology Clinics Of North America, [S.L.], v. 35, n. 5, p. 895-911, out. 2021. Elsevier BV. http://dx.doi.org/10.1016/j.hoc.2021.05.003.
2. Instituto Nacional de Câncer (Brasil). Diagnóstico precoce do câncer de boca / Instituto Nacional de Câncer. – Rio de Janeiro : INCA, 2022.
3. LOUREDO, Bv.; VARGAS, Pa.; PÉREZ-DE-OLIVEIRA, Me.; LOPES, Ma.; KOWALSKI, Lp.; CURADO, Mp.. Epidemiology and survival outcomes of lip, oral cavity, and oropharyngeal squamous cell carcinoma in a southeast Brazilian population. Medicina Oral Patología Oral y Cirugia Bucal, [S.L.], p. 274-284, 2022. Medicina Oral, S.L.. http://dx.doi.org/10.4317/medoral.25147.
Palavras Chave
Reconstrução de lábio; retalho de lingua
Arquivos
Área
Cirurgia Plástica
Categoria
Cirurgia Plástica
Instituições
Hospital do Servidor Público Estadual de São Paulo - HSPE-SP - São Paulo - Brasil
Autores
RAFAELA MIHO YTO, AN WAN CHING, EDUARDO MACHADO MARIANO, VIVIAN CALVINO LAGARES SCALCO, ANNA LUIZA NUNES DE FREITAS, ATHOS ALVARES DUTRA